Um Trio Improvável

Foi num fim de tarde chuvoso, próprio de Abril, que nos encontrámos na sala da lareira, no Centro Comunitário. A avó, Maria Berta (MB), tem 74 anos de força e generosidade, 15 deles dedicados ao voluntariado no CCPC. A neta, Maria (M), tem 15 anos de espontaneidade e doçura, e já muitas histórias para contar no que diz respeito à ética e à descoberta dos valores humanos. Ambas partilham uma admirável determinação para fazer a diferença.

Foi assim que avó e neta se juntaram para abraçar uma nova experiência e juntar a esse abraço a Marah e a Marlem. No fim de contas, são laços como estes que transformam a comunidade. Apresentamos a história do “trio improvável” do CCPC.

– Como é que tudo começou?

MB: Eu fui professora durante 34 anos, conheço o CCPC desde que existe, e comecei a fazer voluntariado cá desde que me reformei. Há dois anos o Centro acolheu uma família Síria e perguntaram se eu podia ajudar. Era preciso apoio para tratar de assuntos administrativos, compras, etc. E também apoiar os filhos com o idioma e com a integração. Nesse campo, sobretudo a filha mais velha, que vinha com fortes dificuldades, depois de passar os últimos anos entre a Turquia, Grécia e Portugal… tendo deixado todas as referências e amizades na Síria.

– É nesse contexto que confia a sua neta ao CCPC…

MB: Sim, as principais dificuldades da Marah eram a Matemática, e eu de Matemática não percebia nada. E foi então que decidi convidar a neta, que é mais ou menos da mesma idade, e que tinha as tardes de sextas-feira livres, para vir comigo!

– O que é que distingue esta menina de 15 anos das outras meninas de 15 anos?

MB: A Maria é escuteira, o pai também já teve experiências de voluntariado em contextos de situação de crise, e ela também já me ia acompanhando a mim… enfim, tem já um forte enquadramento de valores. E aceitou logo!

M: Tinha curiosidade, queria saber como era, queria ajudar. No início a Marah era muito tímida, muito mais do que irmão dela, dadas as diferenças culturais entre géneros. E eu convidei-a logo para ir assistir ao teatro da festa da minha escola, na altura. Avisei as minhas amigas que ela vinha, para não serem inconvenientes (risos). E desde então quando me convidam para ir a algum lado às sextas-feiras à tarde digo logo “Meninas, hoje não posso, porque tenho o Centro!”

– Quando é que perceberam que estavam a criar realmente uma mudança?

MB: Nós fazíamos vários exercícios de dinâmica de grupo, e a dada altura fizemos um em que era preciso cada uma dizer uma coisa de que gostasse. Tinha que ser algo daqui, de Portugal.

M: Eu respondi “de torradas” ou algo do género (risos).

MB: E a Marah respondeu: “da Maria”. E nós ficámos, assim, espantadas, sem saber o que dizer. Criou-se uma amizade autêntica.

– E como é que têm alimentado essa amizade?

MB: Olhe, já fomos passear, lanchar juntas. Já fomos convidados para ir a casa da família. E houve sinais culturais de confiança que nos emocionaram, de facto. Criaram-se laços fortes.

– E quando é que a Marlem entrou nesta história?

MB: A Marlem chegou da Guiné e mais uma vez perguntaram se eu podia ajudar. Ela fez a Escola Primária no Senegal e portanto tinha várias dificuldades com a língua. Eu, que falo um pouco de francês, ofereci-me para ajudar e integrei-a, há dois meses, nas tardes de sexta-feira. A Marlem passou a querer vir só nesse dia! (risos) Não foram coisas muito pensadas nem planeadas – eu sempre gostei de viver a vida assim, a agarrar as oportunidades espontaneamente.

– E agora é a Marah que toma a iniciativa de ajudar na integração da Marlem, não é assim?

MB: Sim, a Marah aceitou imediatamente a Marlem. Por ter sido ajudada, compreendeu a diferença que podia fazer na integração da Marlem. Elas andam na mesma escola e partilham as aulas de Português para alunos de língua não-materna. Um dia destes perguntei à Marah se tem visto a Marlem na escola e ela respondeu: “Sim, esta semana falei com ela quatro vezes!”.

– Como se o espírito de entreajuda fosse contagioso, não é?

MB: Veja bem, numa semana, para alguém que no início não falava com ninguém, há realmente um esforço de poder fazer a diferença.

– Foi assim que nasceu o “trio improvável”…

MB: Sim, num dos exercícios que fizemos, para encontrar as diferenças e semelhanças, vimos que era curioso que elas tivessem todas os nomes começados por “M” e tivessem origem em três continentes diferentes. A probabilidade de elas virem a conhecer-se era realmente remota…

– O que é que mudou na vossa relação?

M: A relação ficou muito mais próxima! Nunca tinha trabalhado com a avó, e depois às vezes acabei eu por comandar a aula dela! (risos) Mudou não ser só a avó a dar, como geralmente as avós dão tudo aos netos. Ser também eu a dar… E passamos muito mais tempo juntas!

MB: Ela ajudou nas aulas, claro, algumas coisas que eram necessárias e que eu não dominava. E correu bem! Podia até ter tentado mais e não ter conseguido, percebe? Sei quantas vezes tive desgostos, tentar coisas com alunos e perdê-los, não conseguir. Mas foi realmente um sucesso, e ainda bem. Eu agora aqui no Centro já não sou a Berta, sou a “Avó da Maria”! (risos)

– Porque é que recomendam o voluntariado?

MB: Sabe, quando eu tinha 15 anos queria mudar o mundo. Depois fui perdendo essa ilusão… Mas hoje sei que posso mudar o mundo de algumas pessoas. É uma satisfação que só quem sente é que sabe. Como eu costumo citar, “a felicidade está mais em dar do que em receber”.

M: Eu era mais desconfiada, era capaz e ver um estranho na rua e mudar de passeio… Agora não! São pessoas.

– O que é que faz a diferença em ser voluntário?

MB: É mais uma atenção do que outra coisa, sabe? É estar atento ao que faz falta. Muitas vezes, durante estes 15 anos, eu vinha dar formação a mulheres em situação de desemprego e muitas perguntavam “É voluntária? Não ganha nada?”. Num dia de chuva lembro-me que aconteceu perguntarem “Então e vem para aqui com esta chuva?” (risos). Eu venho, claro, respondia eu, se fosse para outro trabalho também tinha ia. E no final daquele processo as pessoas eram outras: eram pessoas que tinham encontrado um sentido, que tinham feito amizades. Pessoas que dantes não tinham ânimo para sair de casa e que depois encontravam essa vontade de se arranjarem, de saírem. As pessoas dão atenção a pormenores que a gente faz sem se dar conta. É ver como uma coisa de nada pode ser importante para aquela pessoa, é inestimável.

Agradecimentos: Maria Berta e Maria

Entrevista: Ana Rute